quinta-feira, dezembro 20, 2007

Saara Nordestina

SAARA NORDESTINA

Roteiro



Cena Inicial – noite – Câmera grua-

A cam segue o mosquito (nas costas) que vem em direção a um barracão todo de madeira, e entra pelo buraco entre o teto e a parede. Um barracão situado no sertão árido nordestino... O mosquito pousa numa prateleira. O barraco, por dentro, possuí várias engenhocas penduradas nas paredes, tipo, cortador de lata, regador, coisas estranhas, de uso, tudo de material ferro.

Cena 2 – close na Regina ( morena encorpada com 38 anos, sempre andando bem arrumada)- cam pega Regina de outras maneiras

Regina corta com uma faca um pedaço de bolo.
“amanhã será um grande dia... (pausa)”
“serei famosa...(suspiro) famosa na capital”
“Ninguém me segura... a Regina, do Sertão, despontando do buraco para a Civilização”
“Tudo bem que é com a...”
“Samuel, como é que se chama mesmo o invento?”

Samuel ( senhor barbudo e com seus cabelos longos, ambos brancos, um pouco cansado, de seus 64 anos) numa rede, responde:
“Bicicleta, Regina”

Regina, tensiona e exclama em bom tom:
“Porra Samuel, B-I-C-I-C-L-E-T-A!!!” “Não poderia se chamar REGINETE!!”
“Que raios, inaugurarei uma ‘mixa’ de uma bicicleta”
(pausa) “é o que tem né...fazer o que? Se isso daí valesse mais que um cavalo, eu seria mais feliz”

“Samuel, você precisa inventar algo maior”
“ Você só faz abridor de lata, de garrafa, alicate, só coisas pequenas”

(Regina fala sentada, de cabeça baixa, em baixo tom, confidenciando a si mesma, mas para Samuel ouvir)
“Foi o meu maior vexame, quando inaugurei aquele abridor de garrafa com rosquinha...”
“Uh!!!”
“Não sei como me submeti a isto, nunca mais quero pagar este mico”

Samuel terminando de comer o bolo, com prato na mão, se ajeita na rede, numa postura mais ereta:
“É Regina, mas amanhã é coisa grande...vai revolucionar a cidade grande”

Regina, escuta, e mais esperançosa, ansiosa, sonha com sua fama:
“Amanhã de manhã vem a mídia, a televisão!!!” (pausa)
“Por que você não inventou a televisão, Samuel ?”

Regina corta outro pedaço de bolo e oferece a Carlos ( rapaz de seus 31 anos, cabelo escuro, curto, magro e estatura de 1m70) que estava sentado, ouvindo-os. Oferece outro pedaço a Samuel, mas ele acena que “não”

Regina:
“Samuel, você vai querer beber com a gente lá no bar ? o Carlos veio nos chamar !”

Samuel:
“Regina, Regina, você sabe que eu não bebo... e amanhã será um longo e agitado dia” “Entrevistas, Regina, repórteres!!”

Regina:
“Ah! ... então, nós vamos”


Cena 3 – externa – noite – Regina e Carlos saem do barraco e andam na cidade de barro. Um bar desponta de longe.

Regina e Carlos saem do barraco. E Regina logo puxa a conversa:
“E aí Carlos, eu preciso de uma resposta sua...” “Vamos meu amor!!” “ venha fugir comigo”.

Carlos, mostra indecisão, abaixa a cabeça e pensa numa maneira de se colocar.

Regina:
“Eu preciso tanto de um homem pra me proteger”
“um caralho duro, possante, invadindo a minha xoxota”
“Sentir o seu dedinho abrindo o meu cuzinho e aí...aí meu Deus!!”
“Venha... eu preciso de alguém para me foder todos os dias” “Você vai de cavalo e eu com esta maldita BICICLETA”

Cena 3.1onírica (efeitos de sonhos) – Regina imagina Carlos em cima do cavalo, sorrindo, eles lado-a-lado, ela de bicicleta, de mãos dadas ( o braço de Carlos, bizarramente comprido esticado). Ambos se olhando, apaixonadamente.
Volta Cena 3, Carlos corta:

“Regina...”

Regina:
“fala meu amor, fala” “Vamos ser felizes...sair por aí, pelo mundo”

Carlos:
“Regina, eu preciso te falar uma coisa...” (Regina ao fundo começa a fazer uma cara de estranhada, assustada, seu rosto se deforma mostrando seu medo)

“Eu vou me casar com Rosinha”
“E não é certo, nessa cidade, um homem casado ter uma amante”

-------------------Corte------ ---------------

Cena 4 – Bar externa – na mesa de sinuca
Regina:
“NNNããããããããooooooo!!!!

Regina solta o taco e se joga na mesa de sinuca, deitando o seu rosto, agarrando as bolas para si.

Close no jogador com palito no dente, ao lado de Carlos, vira o pescoço para Carlos e diz:
“Porra, com a Regina é Fóda”

Cena 5 – no meio da Rua – Noite – Regina volta chorando, a passos largos

Regina:
“droga... Droga... droga !!!”
“Que vida!!”
“Carlos não me quer mais, não vai me levar daqui, não quer mais me comer”

“ Deus ........(longa pausa)....... Você nem me vê”
“Me odeia!!”
“Não faz nada para eu sair desta merda de cidadezinha”
“Você vai ver só, vou eu!!!...”

Cena 6 – na frente do barraco, Regina entra – externa/interna -
- interna – Samuel está numa cadeira de balanço, acomodado, lendo um livro.
Regina vai direto para o canto da sala e pega bicicleta. Move o invento e vai em direção a porta.

Samuel, em tom ríspido:
“Aonde você vai, Regina!!!”

Rg grita: “Vou me embora”

Sm: “Volta aqui Regina, você não vai, não !!!”
“Me respeita!!!”

Rg: “Me respeita ?...”
“respeitar o quê... um velho desse que leva ‘um ano’ para levantar o pau!!!...que nem levanta o pau!!”
“Um velho inútil!!!”

Samuel começa a ter ‘falta de ar’:
“Regina!!...”

Rg: “ E toda a cidade sabe que você é um corno, seu velho INÙTIL!!!”

Regina escapa com a bicicleta.

Cena 8 – externa – Rua – noite
Regina saí pedalando desesperadamente... pedala sem harmonia, rapidamente.

Cena 9onírica – close – imagem do Samuel, como se Regina estivesse sonhando.
Samuel coloca as mãos no pescoço, como se estivesse se estrangulando:
“Oh ... Ô...Ô ...”
“CARALHO!!!!” -
Solta a mão do pescoço, caí na cadeira, com sua mão derrubando uma faca da mesa.

Cena 9.1onírica- close na faca – Mão de Samuel a agarra.

Cena 10 - Volta Cena 8 – externa –rua –noite
Aparece um buraco e Regina não desvia, caí, solta um grito.
Espatifada do chão, se levanta gemendo. Ajunta a bicicleta e vê que ela está quebrada. Testa a maquinaria que não anda mais.
Rg Fala baixinho, frustrada:
“Droga, essa... essa porcaria não serviu pra nada...velho inútil”

Volta o caminho carregando a bicicleta

Cena 11 – externo/interno – rua/barraco – Regina entra chorando, passa a bicicleta e abandona a porta aberta.
Regina:
“Samuel, seu velho babaca...”

Rg vê Samuel sentado na sua cadeira de balanço com um furo no peito e a faca ensangüentada no chão.
Ela anda até a frente da cadeira, se agacha e pega a faca, assombrada.

Cena 12 – interna – cam voltado para a porta
Carlos aparece com a cabeça na porta, incomodado, esgueira-se para dentro da casa e assiste Regina com a faca na mão. Dá meia volta, e na ponta dos pés saí da casa, passando a porta, corre.

Cena 13 – interna -
Regina, sem reação, senta na cama ao lado de Samuel (imóvel na cadeira)

Cena 14 – interna- cam voltado para a porta
Carlos chega com 2 policiais e uma multidão vem junto para acompanhar.
Ao avistar Regina, e esta vê Carlos, ele saí da frente dos policiais. Estes percebendo o seu aceno, rapidamente vai de encontro a Regina e a aborda.

Policial 1:
“ a Senhora está presa”

Policial 2 analisa o furo no Samuel. Percebe que ele está morto. Coloca as luvas, a toma de Regina e, fala ao companheiro:
“Já mandamos vir um especialista da capital”
“Amanhã ele estará aqui e poderá fazer o laudo da perícia”

Vira-se para Regina: “enquanto isto, a Senhora aguarda na cadeia”

Regina, atônita, enfraquecida, se deixa levar, e a multidão os cercam e saem todos juntos

Cena 15 – interna – travelling no corredor mostrando o teto – cela – solitária
(Barulho da tranca)
Regina anda um pouco e se senta na cama cinza.

Fica por um tempo Regina sentada. (Cam fixa)

Deita. (Cam por um tempo focando os olhos)

Cena 16 – interna –corredor – Cam fechada no rosto do policial que anda pelo corredor.
Abre cam – Policial abre a cela.

Policial: “ Dona Regina, vamos acordar!!”

Regina se levanta e logo vai em direção da porta. O policial a segue atrás.

Cena 17 – cam escura – somente sons do policial:

“A senhora está solta”
“ O laudo a inocenta” “serão averiguados as possibilidades de um suicídio ou de um crime”

Cena Final – externa – Dia – meio da rua
A Cidade parece uma cidade do far west em dia de duelo. Deserta.

Regina saí da cadeia, toma a rua, cambaleando, tonteada.
No meio da rua, se vira para um lado: vê casas abandonadas (vidraças quebradas, escuro, paredes caídas), vira-se para o outro lado, idem (sem imagens), se vira para frente e olha a Cam (fixa).
Caminha para a frente, olhando para a cam ( em direção a esta), caminha, com o olhar fixo e cansado.
Passa um carro Van da Reportagem correndo na sua frente, e ela despenca ao chão... FIM


sexta-feira, dezembro 14, 2007

a Porta pede padrão

este poema foi pensado em Foucault, e escrito na parede da UFSC no dia da Livre Expressão, dia este reservado para pintar as paredes do CFH. O poema não tem nome e deve ter sido escrito em 2004.

a Porta

a Porta pede padrão
para o Piá poder.
- Para Piá você entrar
é preciso 'não-piar'.

Entra encontrando seu canto
Sem encanto entristece
E tece sua tez ao outro
- Num tácito trampo de porco !

Aos poucos morre um tanto
seguindo Santo...voando acima.
As leis seguram-no ao teto
sua Casa de louco Assassina.

Super-Homem

mais um poema meu, escrito em Foz do Iguazu, ciudad mezclada com o jeito brasileiro. vale a pena conhecer lá e passa por Ciudad del este (Paraguay) y Nueva Iguaçu ( Argentina), uma cidade colada a outra, 2004.

Poema expressa no asfalto quente de Foz de Iguazu, num barzinho, tomando cerveja Conti. Que saudades!!!


Super-Homem

Só, ninguém viu.
Olhou o céu e sonhou
(imperfeição, vazio),
Ao redor vislumbrou:
O poder que emerge da cidade
Deus é a humanidade !

E sua ética figurada
Não foi sequer arranhada.
Comovido, se libertou:
"Posso fazer mais".
Uniu! seu poder amou.
Dirigiu homens, guerra e paz.

sábado, dezembro 01, 2007

Trago Dois Poemas meus ( cont...)

O primeiro poema revela uma foto da estética dionísiaca, escrita por Nietzsche. Este segundo poema, revela a estética apolínea, também muito singular a Nietzsche.

VERSOS

Que maravilha são os versos !
Às crianças devem educar,
Da poesia fazer-se servos,
A vida a viver e a melhorar.

Mas, do verso que traz o amor,
Traz também o gume afiado
Que talha na alma, a flor,
Ao Fim cru, dolorido e cansado.

Nos versos não há valor.
Os versos trazem a natureza
Das cantigas de beleza e de dor,
Do ser que aguça, outro reza.

Uma essência do verso é cantar,
E viver alto para o espirito,
Como a harmonia crua do mar,
Ou na catarse humana do rito.

Voltemos, Ó seres da sorte, ao verso !
Traga cor e movimento ao lar!
Enfeite a cidade em seu inverso,
Talhando co' mercantil, jogo de azar.

Que maravilha são os versos !


Podemos ver alguns aspectos principais que traz a marca apolínea. Primeiro, se trata de uma poesia que traz contribuição ao grego, a favor de um melhoramento, pois trata da educação pela poesia, ensinando que nela não há o valor ( do bem e do mal distintamente). Deste modo, é uma poesia nobre, poesia grega. Fazer-se servos da poesia indica uma servidão diferente da que com Deus, ou outro Pai qualquer. O compromisso é com a arte, que é humana. Ao fim cru, dolorido e cansado indica algo que Nietzsche salientou, que a poesia de Homero se deu sob a aparência (apolínea) da incorporação da natureza e suas forças (os Titãs, concepção pré-olímpica) pela arte e seus sentidos, dando um lugar a Dionísio ( que é a força, a licensiodade sexual, as festas sexuais, a unidade com a terra, sua desindividualização) no hegemônico mundo apolíneo, que tinha pavor, medo da morte, desta desindividualização. Com a poesia de Homero, dado por esta aparência, se perdeu a Era dos Titãs, a era heróica, dando um lugar as lamentações que é a própria condição da não-potência frente a natureza. Eu vejo que Nietzsche traz muito do contexto moderno que ele viveu para esta leitura, pois o que ele fez foi uma genealogia da arte grega, como se embrenhou na condição grega. No prefácio do livro ele é muito criticado, pois seu ponto de vista se mistura com seu objeto de estudo, não que seja um problema, mas perde um pouco da validade, mas não o deixa de ser intrigante e um material muito bom e rico para se trabalhar. Estou concordando com isto.
Voltando ao poema, Os versos trazem a natureza, indica esta imitação da natureza e controle dela, nada mais apolíneo.
Vejam:

Uma essência do verso é cantar,
E viver alto para o espirito,
Como a harmonia crua do mar,
Ou na catarse humana do rito.

Aqui mostra a atitude grega com a arte, elevando-a a um bem comum, de todos, elevando –a aos Deuses, criados pela imaginação grega para superar a existência de seu mal-estar, e dando um sentido humano às divindades que possibilitassem agora deles agirem conforme a estética/ética humana. O dever com os Deuses (espelho dos humanos) é o dever com os humanos, o liberando de viver uma vida rica, artística, humana, num separação/superação da natureza, da força dos Titãs. Esta separação se dá pelo pavor (da força sexual dionísica onde o corpo se perde na unidade). Vale lembrar que o Deus Dionísio (que é diferente desta força dionisíaca bárbara) é o Deus das Festas, do Teatro. Acho que é neste lugar que Nietzsche chama a atenção. O mundo apolíneo seqüestraria esta força, dando um lugar a Dionísio como a força dos Titãs (acho eu). Esta estrofe mostra que o apolíneo venceu, captando para os sentidos a força da natureza. Diminuindo sua força. Igualar o espírito com a força do mar, acredito eu que é colocar na cena esta força da natureza, na imaginação, nada mais apolíneo.

Dá para perceber a diferença dos dois poemas. Um se volta na força dos instintos, com o foco mais na potência dos membros, dos músculos, do enfrentamento, do animal e outro se faz na possibilidade da catarse na arte, na poesia, na música.
E realmente, eu estava vivendo poesia nesta época. Eu morava na praia, pedalava, e na universidade, o nosso grupo, fazía muita arte. Muitos estavam vivendo nela, lembro do Poeta Cesinha que era referência dos movimentos, do músico Iê, que andava pela universidade tocando sua flauta e tocando pandeiro, das danças femininas das mulheres, a Laila, a Fernanda (começando o Arrasta Ilha), a Bicicletada, o pessoal das ciências sociais, Bené, Leozão, Japa, O Luciano Índio da filosofia, amigão, estava em todas, do Ninno e sua risada que estremecia a caretice do movimento estudantil pró-revolução russa, da galera da Rádio de Tróia vendendo cerveja sem copo descartável, cada um trazia sua caneca; estávamos todos incluídos em todos estes movimentos. O ambiente era o Bosque do CFH, no teatro de arena. Uns faziam malabares, outros batiam uma bolinha. O ambiente era limpo e transparente como uma festa Apolínea. E era mágico, era muito gostoso, eu tinha uma alegria imensa. Apresentei estes versos, foi o primeiro lugar que apresentei. Acho que nem eu valorizei tanto, apesar de que sabia que havia riqueza nele. Que saudade, que tempo!! Esse nosso grupo teve coesão no DCE 2001, onde era uma esperança de fazer política estudantil. Mas, os frutos doces, vermelhinhos, só se deram depois, com a proposta do fazer sem instituição e congregou a todos, num movimento muito bonito e orgânico, vivo ainda hoje. Então não falo do passado, e sim de agora.

Vejam que, apolíneo, dionisíaco, vai para além do bem e do mal, não se enganem com teorias ortodoxas, onde o domínio da natureza é ruim e que o fera é ser animal, natural. Nada mais apolíneo que isto. E nem, que a nossa energia esta na sublimação cultural, da arte. Nada mais europeu, sem o sangue efervescente do chão latino-americano. Nem que a verdade, as respostas estão na lógica e o catarse está no rito. Nada mais cindido que isto!! Leiam “A Origem da Tragédia” e verão um belo ensaio que traduz muito do que passamos agora na (pós) modernidade. Não basta eu colocar aqui, o que é Dionísio e o que é Apolo (Deus da Forma, da Arte, da Guerra). Dionísio é esta força das entranhas, a perdição de si no prazer, o caos, vinculado a terra. Outro livro ótimo é da Camile Paglia “Personas Sexuais: de Nerfetite a Emily Dickson”.

Quis mostrar um pouco o contexto em que estava com o valor da poesia e dizer que ambas remete a estética de que Nietzsche refletiu dos gregos.

Arrevoá-aaa Baco!!!!

Trago Dois Poemas Meus

Trago dois poemas. O primeiro eu fiz na Argentina na ciudad Necochea, onde eu e meu amigo Rafael fizemos uma viagem barata, pegando carona, trem de 4a classe, ônibus e muito chinelo na estrada.
´Star no mundo e fazer poesia, interagir com pessoas que vivem na malandragem do mundo, Argentinos, Bolivianos, Paraguaios que trabalham "camelando" (os camelôs). Ficamos numa pensão onde pagávamos 12 pesos (12 reais) pra duas pessoas, num lugar surreal pra minha realidade sócio-econômica, quartos sem portas ( só com lençol na porta), panelas amontoadas no corredor, muita gente gritando, porta batendo, e nós fizemos a nossa também. Tomamos un trago, fizemos amizade com um cafetão de boludo ( que disse que mandava na rua e era pra gente ficar sossegado), jogamos xadrez a noite toda, chegamos enborrachados.
No trem, um arranjou confusão com a gente, chamamos pra porrada, ameaçaram jogar nossas coisas pela janela enquanto durmíamos ( viagem a Mar del Plata, das 23h-7h) na 4a classe, numa condição horrível (com poltrona de coletivo, onde o apoio terminava nas espáduas), dissemos que nós quebraríamos eles com "conhece jiu-jitsu? te mato em 5 segundos". Nem tenho jiu jitsu, só sei dar o mata-leão. Dormimos no chão do trem, da rodoviária onde conhecemos um guerrilheiro para-militar, que faz o trabalho sujo pro governo, idéias fascistas. O cara era simples, estava indo para B.Aires trabalhar de pedreiro numa obra, e contou mil história das anti-guerrilhas contra as FARCs. Artesões gringos tocando berimbaú e cantando a capoeira com sotaque rústico castellano. Dormimos na casa de um cara que não tinha 90 centavos para comprar um leite para a pequena Catarina, su hijita ( La Cata, ele a chamava). Sua mulher continuava no tráfico, durmimos na casa abandonada dele onde não tinha nada, nada de nada, pior, uma cama sem colchão, prateleiras sem nada, fogão sem gás, geladeira só com uma garrafa de água. Ainda a água da descarga vazou quando o Rafael puxou. Ele limpou. O chão não era imundo porque não havia casa, era todo empoeirado, areia. Nós pagamos o leite pra ele, era tudo o que tínhamos na hora. Chegamos numa cidade vizinha a Necochea, Quequén, a meia noite, andamos muito pra achar um camping que alguém tinha recomendado na rodoviária ( ah, lembro que assistimos um pouco de futebol na Tv, River e Racing, quando chegamos). E chegando neste camping ( colônia de férias para crianças),que era muito caro, pedimos pra ficar. O guarda não deixou e chegou a dona, muito relutantemente, seu coração amoleceu, se certificou que não haveria chegada de crianças na manhã seguinte e deixou com a condição que dormíssemos na cabana do índio ( para que seus hóspedes não nos vissem). Assim feito, noutro dia, chegou uma criançada e fomos acordados com os gritos deles. Gostei demais!! muito bom ser acordado com esta energia. E eles abriram a lona da porta da cabana para brincar e gritaram: " Una carpa (barraca), hay una carpa aquí dientro!!" e todos vieram ver, e gritavam, o que apareceu de rostos sorridentes na porta. O Rafael saiu num pulo, batendo a mão na boca e imitando índio, eles sairam aos gritos curtindo a onda. Eu tinha escondido num cantinho do camping minha toalha molhada, estendida para secar, e levaram a toalha, fiquei sem toalha. Conversamos com um niño llamado Emiliano, enquanto desarmávamos a barraca, perguntamos a ele se conhecia seu xará, Emiliano Zapata, falamos um pouquinho deste revolucionário mexicano. Enfim, são tantas belas histórias ( acho que nunca esquecerei desta viagem!!!).
´Star no mundo e fazer poesia, em meio a este chão, quente, latino-americano (que nós brasileiros conhecemos tão pouco ou quase nada, não nos vínculamos aos nossos. Queremos o que é americano e europeu, e achamos que o que é latino é pobre. Achamos isto sem conhecer. Assistimos televisão e achamos isto. É rico, camaradas, de afetividade, de alegria e solidariedade e tantos outros valores).
Em Necochea, a quase 2 horas do centro da cidade, andávamos todos os dias pra pegar uma festa, comprar coisas, sabonetinho de 0,70 pesos, que também era o sabão de roupa, estava eu na paz do camping, com banhos de mar e escrevi estes versos:


Humano Demasiadamente Desumano

Quando sentimos fome,
Comemos.
E, pulamos as escadas
Às mãos espalmadas,
E boca salivando.

Quando sentimos frio,
Nos abrigamos.
E, escolhemos o cobertor
À ira de quem ficou
Sem chance de escolher.

Quando sentimos frio,
Queremos comer.

A necessidade é sirene de polícia
Ao corpo que caça sem desmedida,
E faz de sua autoridade
Brutal ação descontida.
Humano.

Olho para o lado,
Buscando para trás,
A verossimilhança
De inteligentes animais.
E, são livres como são,
O corpo não os livra da pulsão,
A força faz. Demasiadamente.

E, sigo sem escolher,
Colhendo o que vejo,
Sem dar valor ao coração.
Pois, não há só neste ser,
Víscera, igual para crer,
Que não se contenta à lasca de pão.
Não pensamos mais, seguimos.
Desumano.


Reflexão: Este poema me parece que traz muito o valor das coisas que Nietzsche traz em seu livro "A Origem da Tragédia". No livro, ele descreve como seu deu a relação dionísica grega e bárbara para os costumes gregos, descrito nos poemas de Homero e outras artes. Na verdade, aventa como que os gregos souberam capturar Dionisio para continuar na condição apolínea, da razão, da lógica, incorporado no prazer pelos sentidos, a catarse pela visão e outros sentidos ( eu estou na página 36 de152). Creio que este meu poema e seu contexto traduz a poesia dionísiaca ( sem a pretensão de ser dionísiaca) e o valor artístico nobre que Nietzsche sugere, com a demolição dos valores cristãos. Na segunda parte, falo mais um pouquinho.


(Lembro que no banheiro deste camping, havia 4 chuveiros separados, eu cantei "Carinhoso" de Pixinguinha, adaptando ao castellano e um cara se amarrou, toda hora lembrava da música, fizemos amizade, ele e sua mulher compartilharam suas frutas, seu chimarrão com a gente, contaram sobre a patagônia).